Detetives selvagens em escala reduzida

O espírito da ficção científica é uma espécie de ensaio geral para Os detetives selvagens – que tem a mesma história, os mesmos personagens, o mesmo clima mas dezenas de narradores e centenas de páginas a mais.

Diferente de Detetives selvagensO espírito da ficção é um livro póstumo. É fácil supor que Roberto Bolaño o escreveu, guardou, viu que podia fazer um livro ainda melhor e então escreveu Detetives selvagens (um dos melhores livros que já li). Eu já tinha lido o Detetives quando li O espírito da ficção. Ler a primeira versão foi como acompanhar o processo de reescritura, mas de trás para frente, já sabendo como termina. E foi muito bom, foi ainda melhor porque O espírito da ficção tem frases como: “A vida toda acreditei que a Maldade, antes de estrear, ensaia suas piruetas em escala reduzida” que, é claro, saí da boca de um personagem, o mesmo que continua sua análise dizendo: “comparadas com os fetiches dos gringos, nossas revistas parecem o que são: bichos feridos.”

Esse personagem tinha compilado uma lista de revistas de poesia marginal do México nos anos 70 – onde a história dos dois livros acontece. Nesse trecho, ele está respondendo a um dos personagens principais, que listara os fetiches gringos: jogos de guerra, jogos de mesa, vídeos e lançamentos musicais. “Aqui, como era de se esperar, procuramos a droga e o hobby mais barato e mais patético: a poesia, as revistas de poesia (…)”.

O livro é uma história de amor adolescente (e uma história de poetas marginais dos tempos em que Bolaño morou no México). As imagens, muito vivas, parecem às vezes mais reais do que as que vemos todos os dias, fora dos livros. Uma das virtudes de Bolaño é a intensidade. Por isso o nome realismo visceral (que adotou para o movimento literário de seus personagens no Detetives selvagens) me voltava a cabeça o tempo todo enquanto lia O espírito da ficção. Os personagens principais são dois adolescentes (de 17 anos) que dividem um quarto no topo de um prédio na Cidade do México. Um deles escreve resenhas para revistas de pequena circulação enquanto o outro envia cartas para autores de ficção científica norte americanos. Eles são um pouco do que Bolaño foi em seus tempos de exílio: personagens sem dinheiro e com muita curiosidade, muita vontade de escrever sobre o que estão vendo.

Da insegurança dos primeiros namoros à sensibilidade dos personagens ao caos latino-americano da época, o livro consegue ser abrangente apesar de curto: a edição brasileira tem 184 páginas, passa longe das 624 do monumental Detetives Selvagens.

A ideia é causar sofrimento de propósito

Há 100 anos, na Itália, Mussolini implementou seu programa de austeridade fiscal. Na Inglaterra, na mesma época, os conservadores também cortaram gastos sociais e forçaram a queda na demanda. Não que essa fosse sua única alternativa, mas era o jeito mais eficiente de sufocar os movimentos sindicais italianos e de acabar com as greves inglesas. Com a economia encolhendo, os gastos sociais cortados e o desemprego em níveis altos, os trabalhadores perderam todo seu poder de barganha e aceitaram os empregos mal pagos que os empresários ofereceram. A política de austeridade, então, atingiu seu objetivo.

O que hoje nós chamamos de políticas de austeridade não são ideias novas. Elas são bem antigas e costumam ser adotadas exatamente nas horas em que a participação dos salários no PIB está crescendo e as reivindicações da população estão ganhado mais força. Parece familiar?

Quem apresenta essa análise, no caso da Itália fascista e da Inglaterra imperial, é a economista italiana Clara Mattei. Em seu livro A Ordem do Capital, publicado no Brasil no fim do ano passado, ela mostra como políticas tão destrutivas como as da austeridade fiscal foram transformadas no discurso padrão de economistas cerca de 100 anos atrás. Não é uma história agradável.

A austeridade, com sua forte contração da demanda, é a culpada pela Grande depressão dos anos 30 do século passado. Nem por isso os economistas deixaram de recomendá-la. Essa ‘recomendação dos especialistas’ é uma parte indispensável da receita para fazer com que uma política que causa tanto sofrimento possa ser implantada em tantos países. “(…) para persistir, a austeridade precisa de especialistas dispostos a falar de suas virtudes. Essa relação se mantém verdadeira, ainda que com um elenco sempre renovado de figuras tecnocráticas”, diz Mattei. O marketing da austeridade tem muito espaço nos jornais e noticiários de TV, com muitos ex-ministros e colunistas para repetir seus dogmas.

O papel desses economistas é apresentar a austeridade como o produto de uma “ciência pura”, como se eles fossem os sábios arautos dessa ciência: os encarregados de levar a luz aos incultos.

A lógica por trás da austeridade é muito apelativa: para resolver nossos problemas é preciso consumir menos e trabalhar mais. Mas o velho John Maynard Keynes mostrou que, se todos fizerem isso ao mesmo tempo, a economia quebra por falta de demanda (o consumo de uma pessoa é, normalmente, a produção de outra). Então, quando economistas austeros propõem essa política, é bom deixar claro quem eles esperam que trabalhe mais e consuma menos. Eles mesmos propõem a política brindando com vinho importado.

O aumento da tecnologia ao longo do tempo deveria nos permitir viver cada vez melhor e com menos horas de trabalho. Mas hoje a sensação geral é que temos que trabalhar cada vez mais e pagar aluguéis mais caros enquanto vemos nossos salários comprarem cada vez menos bens e serviços.

Isso, é claro, acontece por conta de uma política austera, de pisar no freio dos juros altos e do corte de gasto público – obrigando uma parte da população a consumir menos (sem emprego) e trabalhar mais (aceitando ganhar pouco para conseguir ter trabalho). O corte de gastos geralmente é seletivo: nunca faltam incentivos e isenções fiscais para empresas e para seus donos.

O enfoque de Mattei – destacando a austeridade como característica comum de regimes tão diferentes quanto o fascismo de Mussolini e o liberalismo da Inglaterra dos anos 20 – ajuda a dar clareza sobre como a austeridade é usada para forçar pessoas a um sacrifício que não querem mas que – graças às políticas austeras – não têm como recusar. O bem estar da população não está na conta dos economistas pró-austeridade. Na prática, eles defendem os interesses de uma parte bastante pequena da população. A austeridade, no fim das contas, é uma espécie de controle social, de proteção contra a democracia.

Nos anos 70, quando a Inglaterra adotou de novo a política de austeridade, a pessoa que ressuscitou essa política (a então primeira-ministra Margareth Thatcher) justificava as demissões, cortes de gastos, privatizações e afins com uma frase famosa: “There is no alternative”, não há alternativa. Ela não dizia que era bom, dizia que era o único jeito.

Isso é falso. Até hoje os ‘austeros’ de lá tentam cortar verbas do NHS, o SUS inglês, do mesmo jeito que os banqueiros daqui fazem lobby para “cortar as vinculações” do orçamento do SUS. Isso é muito cruel: mata algumas pessoas por falta de assistência e faz com que outras se sujeitem a trabalhos ruins e mal pagos para não morrer por falta de atendimento médico.

Aqui, enquanto os jornais defendem o equilíbrio orçamentário, bancos e famílias tradicionais embolsam dezenas de bilhões de reais – e fazem isso sorrindo para as câmeras. Eles poderiam pagar mais imposto em vez de ser isentos do Imposto de Renda sobre dividendos… É claro que alguma coisa está muito errada quando até um governo supostamente de esquerda adota um teto/arcabouço de gastos para… para ser austero, como exigem os bilionários locais.

Como escapamos disso? Não sei. Mas fiquei feliz por ler o livro de Mattei – que apresenta o problema de um jeito claro, direto e bem embasado. Um marqueteiro dos anos 90 resumiria nossa falta de perspectiva atual com a frase “É a austeridade, estúpidos”. Bom, parece que é isso mesmo.

A fábrica de mínions do novo governo

Passei os quatro anos do governo anterior tentando descobrir a fórmula do desminionizamento. Sim, eu era muito pretensioso, principalmente porque eu não sabia como é ser um mínion, não tinha ideia de como (ou por que) um não-mínion passava a atacar vacinas, defender o acesso a armas e a chamar qualquer pessoa de comunista (em tom de ofensa).

O que mudou desde aquela época? Já chego lá. O mínion é um ser frustrado e revoltado. Sem lidar com essa frustração e revolta, ninguém vai convence-lo de nada. Por que estou dizendo isso? Por que começo a passar pela experiência mínion: meu lado frustrado e irritadiço aflora toda vez que vejo a ministra da Gestão dizer que o governo não vai fazer nada para recompor os mais de 30% de perda de renda real que os funcionários públicos federais tiveram nas gestões de Michel Temer e do neo-fascista.

Ministra, desse jeito, a senhora vai me empurrar para a oposição. Não de forma racional (a oposição de esquerda hoje é mínima e a de direta é horrenda) mas só por raiva. Outro dia li, num comentário de vídeo do Youtube, a frase que resume minha impressão do governo hoje: “aos meus inimigos tudo, aos meus amigos, o que dá, o que sobra”.

Num mar de concessões à direita, começando pelo discurso em defesa do novo teto de gastos (rebatizado como arcabouço) o governo deixa de lado seus apoiadores de primeira hora (e isso é muito frustrante). Se a coalizão governista frustrar muito mais gente, é capaz de ir mal já na eleição deste ano para prefeito e vereadores.

A direita pró-arcabouço não vai apoiar o governo quando surgir qualquer tipo de crise. Não. Ao primeiro sinal de dificuldade, ela vai inflar outro pato amarelo e fazer campanha (de novo) contra os impostos. Já vimos esse filme. Baixar o preço da energia e dar subsídios a todo tipo de indústria não fez Dilma Rousseff ser apoiada pela Fiesp (só fez o déficit orçamentário do governo aumentar e a direita usar o déficit como desculpa para o impeachment).

O governo brinca com fogo ao aceitar uma política de juros altos (caindo muito de vagar) e austeridade fiscal – que é o nome ortodoxo para esse novo teto de gastos. Juntos, os dois travam a economia. Há seis meses o PIB não cresce e, antes disso, cresceu puxado pela produção de soja e pela de minério de ferro (que foi exportada, não melhorou a vida de muita gente).

Para completar o pacote de frustração, a ministra anunciou o que seria uma fonte de esperança: disse que, se a arrecadação crescer muito, pode sobrar alguma migalha para os funcionários públicos. Ela está jogando para uma plateia de banqueiros? Porque não há benefício nenhum em ir para os jornais insultar funcionários que a cada dia têm mais dificuldade em pagar as contas.

Já tomei muitas doses de várias vacinas mas, entre os que se irritam com a ministra, vários não são vacinados – e podem receber vídeos conspiratórios do Youtube e mensagens de zap com “soluções fáceis” para “acabar com tudo que está aí”. A direita nunca interrompeu sua produção de vídeos negacionistas surreais.

Sim, desse jeito, a ministra vai conseguir votos para a oposição – a de extrema direita. Para conseguir o contrário, para desminionizar a população, deveria adotar a política oposta: oferecer algum alento em vez de anunciar austeridade. Austeridade não tem nada a ver com racionalidade econômica: é uma questão política mesmo, de disputa por poder – ela é a política dos partidos de direita. O livro neste link, da economista Clara Mattei, mostra como as políticas de austeridade foram inventadas. A ministra da Gestão, professora de economia, sabe de tudo isso. Então, por que não para de nos ofender com o discurso da austeridade?

PS.: O governo mínion, mesmo sendo governo, conseguia ter um discurso inflamado e revoltado (para mobilizar os mínions!). Já o governo atual é perfeitamente burocrático: é estruturado, ponderado e não seduz ninguém, não atrai para si os revoltados como o governo anterior fazia. Ao lado da política econômica, a política de comunicação também vai mal.

Não me canso de repetir: esperava mais desse governo.

Os fatos no caso do Sr. Valdemar

Tenho que começar com uma citação. É com os dois parágrafos abaixo, traduzidos pelo Google, que a história começa:

“Não acho surpreendente que o extraordinário caso do Sr. Valdemar tenha provocado discussões. Teria sido um milagre se não fosse assim – especialmente nessas circunstâncias. Com o desejo de todas as partes envolvidas de manter o caso longe do público, pelo menos por enquanto ou até que tivéssemos mais oportunidades de investigar, (…) relatos distorcidos ou exagerados abriram caminho na sociedade. Eles se tornaram a fonte de muitas deturpações desagradáveis ​​e, muito naturalmente, de muita descrença.

Agora é necessário que eu apresente os fatos – tanto quanto eu os compreendo. De forma resumida, são estes:”

E nesse ponto começa de fato a história do Sr. Valdemar, como contada por Edgar Allan Poe em 1845. O caso é descrito na Wikipédia de forma também vaga: ‘“o enredo ocorre com personagens críveis, cujas ações podem ser reproduzidas (com exceção, é claro de Sr. Valdemar), assim como o pano de fundo em que a história se desenvolve, que é realista. Essa ‘sobriedade’, no entanto, converge no resultado fantástico que é o arco do Sr. Valdemar”.

No curso de jornalismo nos ensinam que qualquer primeiro parágrafo que sirva para mais de um texto não é um bom primeiro parágrafo, não é um bom lide. Textos genéricos são uma espécie de abominação assustadora para os jornalistas contemporâneos.

Mas Allan Poe não é contemporâneo – nem jornalista. Meus velhos professores chamariam sua abertura de “nariz de cera” que é como se insultava esses tipo de texto nos meus tempos de faculdade. E, nariz de cera à parte, Poe está lá: voltando à nossa memória o tempo todo, em histórias de vingança, de loucura, ou apenas em histórias que têm um Valdemar no título.

A propósito, a desse conto tem muito pouco a ver com a do Valdemar atualmente no noticiário. O Valdemar do conto está à morte, é mesmerizado e, por isso, fica em um estado vegetativo: morto, como ele mesmo diz mas, ainda assim, capaz de responder perguntas.

Bom, talvez as histórias acabem tendo alguma coisa em comum. Vamos ver se o Valdemar atual, politicamente morto, vai falar alguma coisa sobre seu caso.

Escultura em homenagem a Edgar Allan Poe (divulgação)
Allan Poe, não Valdemar.

Von Neumann, Lee Sedol e a nova saga científica de Benjamin Labatut

MANIAC, de Benjamin Labatut, é uma mistura de romance biográfico sobre a vida de John von Neumann e reportagem new journalism sobre inteligência artificial (em especial, sobre o momento em que ela dominou o jogo de Go).

Labatut mantém o tom de Quando deixamos de entender o mundo, seu primeiro grande sucesso. Ele fala sobre ciência como alguém que conhece o tema – mas que conhece também os limites a partir dos quais uma teoria pode virar uma grande sopa de letrinhas. Para completar, ele fala com muitas vozes: a história do livro é narrada, a cada capítulo, por um personagem diferente. De Richard Feynman a Marina von Neumann (a filha do marciano, segundo ela mesma), as vozes e pontos de vista vão se alternando à medida que a história avança.

O livro tem algumas cenas memoráveis. Em uma delas, o jovem von Neumann, ex-aluno do matemático David Hilbert, está à frente de um congresso de matemáticos em Königsberg. O congresso está cheio de seguidores de Hilbert, conhecido por tentar provar que a matemática podia ser um sistema completo, consistente etc.. A tese de doutorado de von Neumann fazia parte do grande projeto de Hilbert sobre o que a matemática podia ser.

No fim do último dia do congresso, um tímido estudante de pós-graduação diz, meio gaguejando, que há afirmações verdadeiras que não podem ser provadas matematicamente. Pouca gente em volta entende o que isso quer dizer. Von Neumann é um deles. Ele ouve e, na mesma hora, entende que seu projeto de pesquisa (e o de Hilbert) acabou, foi refutado, não faz mais sentido.

Ele conversa com o estudante, um jovem de 24 anos chamado Kurt Gödel – que acabaria reconhecido como o maior lógico do século XX e que provaria matematicamente que nem tudo em matemática pode ser provado, que a matemática é incompleta (ou inconsistente, mas é melhor que seja incompleta).

Ver o primeiro Teorema da incompletude surgir no meio de uma conferência de discípulos de Hilbert é como ver Galileu gritar “Gira em torno do Sol!” em uma convenção de bispos medievais defensores geocentrismo (e não ser preso depois).

Outra cena ímpar do livro é a de von Neumann morrendo, com câncer no cérebro, internado em um hospital militar em Washington. Sua filha, Marina, então com 21 anos, recém saída da faculdade, vai visitá-lo. Ela se espanta por ver o pai tão apavorado com a ideia de que vai morrer em breve e pergunta: Você recomendou que o governo americano lançasse o arsenal atômico na União Soviética, você consegue contemplar com tranquilidade a morte de centenas de milhões de pessoas em um ataque nuclear preventivo mas não consegue encarar a própria morte com alguma calma ou dignidade?

“Isso é completamente diferente”, responde o von Neumann do texto (em que Marina von Neumann é a personagem narradora).   

O livro passa pela criação do MANIAC (Mathematical Analyser, Numerical Integrator and Computer), o primeiro computador criado com uma arquitetura similar à dos computadores de hoje, fala sobre a Teoria dos jogos, criada por von Neumann com o economista Oskar Morgenstern e chega aos capítulos finais – já depois da morte de von Neumann – para discutir inteligência artificial.

Nessa parte, o personagem principal é Lee Sedol, o campeão coreano que enfrenta a rede neural AlphaGo, criada pela empresa DeepMind (do Goggle) para dominar completamente o jogo de Go. Em 2016, Lee aceitou o desafio de disputar cinco partidas de Go contra a rede de inteligência artificial. A descrição dessas partidas é, provavelmente, a parte mais emocionante do livro.     

No mundo hiperquantificado e sem muitos critérios éticos que von Neumann ajudou a criar, decisões cada vez mais complexas poderiam ser automatizadas. O problema do Go, como lembram os criadores do AlphaGo, é que ele é muito mais amplo que o xadrez: tem muito mais cenários possíveis e não pode ser formalizado em um programa normal – como o xadrez foi, já nos tempos do MANIAC. Para fazer o computador jogar Go decentemente, foi preciso criar uma rede neural artificial e treiná-la jogando contra si mesma milhões de vezes. A rede é útil, é um avanço tecnológico, mas a forma como seus criadores resolveram demonstrar sua capacidade de vencer os humanos foi desoladora, foi fazê-la enfrentar uma espécie de símbolo do que a humanidade tem de melhor. Além de gênio do Go, Lee Sedol é muito mais simpático que Garry Kasparov, campeão de xadrez derrotado pelo computador Deep Blue nos anos 90.

A Google produziu um documentário sobre a disputa entre Lee e o AlphaGo, com acesso liberado no YouTube. Mas, mesmo no documentário da empresa dona do AlphaGo, é difícil não tomar partido vendo a tropa de técnicos da Inglaterra (e sabe-se lá de onde mais), com toda sua parafernalha eletrônica, enfrentar um tímido sul-coreano sentado em frente a um tabuleiro.

Lee é melhor que Kasparov. Enfrentando uma tecnologia 20 anos mais avançada que a que derrotou o jogador de xadrez, ele ganha – em uma virada espetacular – uma das cinco partidas. É só uma, mas ele prova que é possível sim vencer a máquina. E a reação da torcida – quando Lee vira o jogo – deixa claro que, na disputa com analistas de sistemas ingleses hiper-bem-financiados, ficamos do lado do pensador discreto que, mesmo quando perde, tem muito mais dignidade que os analistas da DeepMind ou que um von Neumann criador de bombas.

John von Neumann e o MANIAC, computador criado para fazer os cálculos da primeira bomba de hidrogênio americana.

Marretadas à direita

Li há pouco que o presidente-eleito da Argentina encarnou o papel de monstro de seriado japonês e destruiu – a marretadas – uma maquete do palácio onde funciona o Banco Central argentino em uma de suas propagandas de campanha. Há três anos, quando tentei imaginar qual o limite do absurdo nas campanhas eleitorais em tempos de deep fake, escrevi um conto em que um candidato de extrema direita (no Brasil) fazia propagandas com um lança-chamas (em vez de serra elétrica) e com uma marreta. O lança-chamas era para acabar com árvores mesmo, mas a marreta era para demolir um palácio fake.

Sim, além de posar com a motosserra, o então candidato argentino comprou abertamente o discurso “destruir tudo isso que está aí” e, de um jeito bastante bizarro, ganhou a eleição usando esse discurso.

O conto (que é curto) começa no próximo parágrafo. A extrema direita é previsível?

“Eu vou destruir tudo!”, gritou o rosto enquadrado na tela do celular. A câmera se afastou mostrando o homem com uma roupa vermelha à prova de fogo – e se afastou ainda mais quando ele acendeu o lança-chamas e começou a queimar uma plantação de eucaliptos. “Tudo!!!”, gritou mais uma vez, rindo, enquanto a câmera 2 (que parecia estar atrás das chamas) dava um close em seu rosto.

A imagem sumiu e foi substituída por um fundo preto com o logo do candidato: um chicote cruzando uma metralhadora com uma caveira presa na ponta. Embaixo, em letras maiúsculas, estava seu bordão de campanha: “VOCÊS SERÃO PUNIDOS”. O texto parecia piscar discretamente alternando tons dourados e prateados.

No estúdio de gravação, Volando desligou o lança-chamas e olhou, perfeitamente tranquilo, para o fundo verde que ocupava o lugar da plantação em chamas. Um assessor engravatado se aproximou para ajuda-lo a tirar o lança-chamas das costas. “O segundo vídeo é o do palácio do governo”, disse o assessor.

“Não vai precisar do lança-chamas?”

“Não. Vamos fazer com uma marreta.”

Dois assistentes de produção apareceram, suados, arrastando um bloco de pedra cor-de-palácio-brasiliense de dois metros de altura.

“Eu vou destruir tudo”, disse Volando ao assessor, entre risadas.

*

A placa no quadro da portaria mostrava os últimos sete andares do prédio ocupados por Joselino, Camargo & associados.  Pelo nome, poderia ser um escritório de advocacia (mas era uma empresa de marketing).

“Eu não sei qual dos sete…”, comecei a dizer ao recepcionista no térreo.

“Então é a cobertura: é a entrada principal.”

No hall do elevador, no último andar, um cartaz de quase dois metros na parede mostrava uma senhora de cabelo curto com o dedo indicador apontando para a câmera. “JUST SAY NO!”, era o texto em letras maiúsculas não-serifadas embaixo da foto. No corredor até a sala de Madalena, mais cartazes com frases negativas e pessoas sorridentes: “TALK TO THE HAND!”, “THERE IS NO ALTERNATIVE”, “RESISTANCE IS USELESS!”, todos em inglês.

Uma recepcionista de cabelo escovinha vestindo um tubinho preto me acompanhou até a sala. Madalena sorriu quando entrei. Os sorrisos eram tão onipresentes que pensei em fechar a cara só para fugir da repetição.

“Você chegou na hora”, ela disse, como se isso fosse uma coisa espantosa.

“Eu sei”, e acho que soei como quem admite ter cometido um crime ou, pelo menos, uma indelicadeza.

“Vem. Vou te mostrar a empresa.”

Nos primeiros andares por onde passamos, a empresa era como todas as outras: salões bem iluminados com ar-condicionado, mesas de fórmica branca com computadores e garrafas térmicas grandes com café. No andar dos desenvolvedores de software havia pequenas salinhas envidraçadas onde eles podiam ouvir música enquanto trabalhavam.

No andar mais baixo, o último onde passamos, ficavam os estúdios: a parte onde os áudios e vídeos eram feitos. Boa parte da campanha de Volando tinha sido gravada naquele andar. Não vou dizer que foi bom ver como os memes eram feitos. Mas Madalena parecia muito feliz por me mostrar a empresa: orgulhosa, satisfeita, sem nenhum tipo de constrangimento com o que eles faziam.

Ainda não era meio-dia quando ela me levou de volta ao último andar. Lá, em uma sala individual, encontramos Matozinho, o redator-chefe. Se eles me contratassem, Matozinho seria meu chefe.

Ele vestia uma camisa social estampada em tons de verde escuro, quase como uma roupa de escritório camuflada. Usava calça jeans e uma corrente dourada no pescoço. A barba era bem cuidada e o cabelo parecia ter sido cortado na véspera. Idade aproximada: 35 anos.

“Madalena falou muito bem de você”, ele disse logo que Madalena nos apresentou.

“Vamos almoçar”, ela interrompeu, antes que eu pudesse agradecer ou retribuir os elogios.

Descemos os três para um restaurante a la carte a menos de um quarteirão do prédio da Joselino, Camargo & associados. Pedi salada: não gosto de fazer entrevistas de emprego com o estômago pesado.

“Você só vai comer isso?!”, implicou meu futuro chefe.

“Gosto de salada”, respondi tão sorridente quanto pude.

“Você sabe que aqui na JCA nós preparamos uns pratos bem pesados.”

“Eu sei. Todo mundo já viu as suas campanhas.”

“Se elas não fossem pesadas, ninguém ia ver.” 

“É.”

“Nós trabalhamos para isso. Mas não se preocupe: você não vai começar escrevendo para o Volando ou para o Carlinhos em São Paulo. Nós estamos fechando três campanhas na Região Norte. Quando os papéis estiverem assinados eu digo direito quem são.”

“Eles têm um perfil específico?”

“Não. Um deles é até de esquerda.”

Assinados os contratos, eu conheceria o candidato da minha campanha e o programador do TensorFlow 4d8, versão adaptada do programa da Google que eles usavam para decidir os rumos da eleição.

“Nós alimentamos a base com tudo que os seguidores de todos os candidatos postam nas redes. O TF4d8 diz o que enviar para cada um. Ele diz até  o que o candidato não deve, em hipótese alguma, dizer.”

“E vocês sempre fazem o que o TF4d8 diz?”

“Sempre.”

Foi a vez de Madalena explicar:

“Lembra de um político que não conseguia dizer ‘nuclear’? De outro que copiava slogans do partido nazista alemão?”

TF4d8?”

“Não. Eram programas mais antigos. Mas a ideia é a mesma”, disse Matozinho.

“Sem sentimentos de culpa?”

“Nós damos ao público o que ele pede. Se ele pedir ódio, ódio; terra plana, terra plana. É isso que o programa mapeia. Se o público não gosta de ‘nuclear’ mas atura bem um ‘núcular’, beleza.”

*

O suor escorre da testa de João Madeira enquanto ele aparafusa o quadro à parede. É um quadro branco, desses de sala de aula. A câmera se afasta e uma mulher com cara de diretora de escola diz:

“Ficou ótimo!”

“Vamos trocar todos”, diz João.

Corte para um fundo branco. Um samba da Mangueira vai ganhando volume enquanto o logo do candidato – pequeno e distante – vai se aproximando, parecendo cada vez maior. O logo tem um livro de matemática deitado e dois de ciências na vertical, com um estetoscópio casualmente largado por cima.

*

Matozinho olhou para a TV em sua sala, com a tela já completamente ocupada pelo logo:

 “O Madeira é candidato ao Senado. Ele não vai reformar escolas.”

“Ninguém liga para isso. O importante é ele aparecer construindo alguma coisa. O TF4d8 já disse que o Carlos Alexandre tem uma imagem de destruidor de coisas. Vamos contrapor oferecendo alguém que constrói”, respondi.

“O vídeo é bobinho. Não provoca emoção nenhuma. Você encaminharia isso para algum dos seus contatos de whatsapp?”

“Eu não posso pôr ele num carro de luxo atropelando mendigos. O outro candidato já fez isso.”

Madeira era um bom candidato. Gostei de ser indicado para trabalhar com ele. Seu único problema era estar em terceiro nas pesquisas, 20 pontos atrás de Carlos Alexandre, o primeiro colocado.

Faltavam 40 dias para as eleições quando Madeira assinou o contrato com a produtora e eu fui realocado para trabalhar com ele. Era mais fácil. Fazer campanha para um candidato do Rio de Janeiro parecia mais natural para mim.

“Agora não esquece: os cariocas são tão ruins quanto os roraimenses. Nada de campanha boazinha”, me disse Madalena quando confirmaram minha transferência.

Mas eu estava fazendo uma campanha boazinha. E ela não funcionava. Os três primeiros vídeos tiveram efeito nulo nas redes sociais e nas pesquisas: não se espalhavam e não traziam votos.

“O que vamos fazer?”, perguntou Madeira em nossa segunda reunião de pauta.

“Explodam os nazistas”, disse Matozinho num tom de voz tão cândido que, por um segundo, pude imagina-lo dando aula para uma turma de pré-primário.

“Como assim?”, perguntou o candidato.

“Façam um vídeo sangrento com o Carlos Alexandre e o… qual é o nome daquele outro?”

“Wiliamson.”

“Isso: o Carlos e o Wiliamson sendo linchados pela população ou levando uns tapas num ringue de MMA.”

“Mas isso não tem nada a ver com política”, comecei a reclamar.

“Tem sim”, se animou Madeira.

“O TF4d8 diz que eles têm queixo de vidro”, completou meu chefe.

“Vamos começar com o MMA. Tem uma academia a duas quadras daqui. Dá pra filmar no ringue deles. Já alugamos coisas deles antes”, disse Madalena.

“E os dublês?”, perguntei.

“Fala com o Tércio lá da produção. Ele também tem um coreógrafo, um cara de kung fu. A gente já trabalhou com ele.”

*

 “Com o apoio de Volando, eu vou fazer mais!”, diz em tom duro Carlos Alexandre, no meio do ringue.

Mal ele termina a frase, um chute atinge seu rosto no queixo e na bochecha. O rosto vai se deformando em câmera lenta enquanto o pé de João Madeira o atinge.

A cena se acelera de novo, João gira sobre o próprio eixo e acerta outro chute, agora na barriga de Carlos, arremessando-o contra as grades do octógono.

“Eu vou te pegar!”, grita Wiliamson, pulando dentro do ringue no mesmo centésimo em que Carlos Alexandre cai desacordado.

Ele parte para cima de João Madeira, mas é derrubado por uma rasteira antes que suas mãos consigam chegar perto do candidato.

Wiliamson solta um grito enquanto cai no chão e a câmera fecha no sorriso quase canastrão de Madeira.

“Madeira, o dragão do Senado”, diz a voz em off enquanto o número do candidato é estampado na tela.

A música de fundo é The eye of the tiger.

*

O vídeo, feito com lutadores profissionais e técnicas de deep fake, viralizou em segundos. Ele fez Madeira ultrapassar Wiliamson e ficar a cinco pontos de Carlos Alexandre. O vídeo tinha um jeitão de filme de kung fu antigo, com um tempero à Van Damme: brega mas engraçado. Vi muitas pessoas gargalhando enquanto assistiam.

Não podíamos perder tempo. A eleição estava ao alcance das mãos apesar de, então, faltarem cinco dias para a votação.

Resolvemos apostar no linchamento. O segundo vídeo teria Madeira comandando uma turba furiosa: todos prontos para espancar seu adversário com o que tivessem nas mãos. Bom, é melhor passar à cena:

*

Exterior, noite, rua transversal mal iluminada no centro da cidade. Carlos Alexandre e dois assessores correm apavorados pisando em poças e derrubando latas de lixo. Atrás deles, com passos firmes e olhar convicto, Madeira segue à frente de dezenas de pessoas, que gritam e gesticulam parecendo muito irritadas.

“A sua hora chegou, Carlos Alexandre!”

Carlos Alexandre e seus assessores param em frente a uma grade: a rua está bloqueada e eles não têm para onde fugir.

Madeira acena com a cabeça e a multidão sai em disparada para atacar o outro candidato.

Os berros da turba se misturam com os gritos de Carlos Alexandre & companhia e a câmera se desvia para o alto de um prédio ao fundo.

O texto “AGORA É A NOSSA VEZ” aparece em vermelho, carimbado na tela, enquanto os gritos do candidato governista parecem aumentar de volume ao fundo.

*

João Madeira virou senador e assinou um contrato de manutenção de imagem com a JCA. Agora produzimos dois vídeos por semana mostrando O dragão do Senado para seus eleitores (sempre da forma mais peculiar possível). 

Os vídeos são enviados por Madeira por todas as suas redes sociais e impulsionados (são publicidade paga) para aparecer também para não-seguidores do senador. Em algumas redes, podemos escolher o perfil desses não-seguidores, o que, é claro, é feito segundo as ordens do TF4d8.

Banco Central da Argentina.

O livro dos pássaros

O jargão corporativo – com start-upsebitdas e afins – serve pelo menos para uma coisa: fazer boas piadas. Em O livro dos pássaros, da quadrinista paranaense Lark, um gato cria uma start-up modernosa. Ao longo dos quadrinhos, podemos acompanhar os dilemas e ansiedades de seus funcionários (todos pássaros).

Excesso de trabalho, amores não correspondidos, quase tudo acontece nas salas da Catch.co, a empresa criada pelo gato. E, sim, o que ele mais quer é que os pássaros cresçam (que engordem) e depois “terminem seu ciclo na empresa”.

O quadrinho abaixo dá ideia de como são as relações de trabalho nessa empresa típica do capitalismo tardio:

O livro acabou de ser lançado. Ele foi editado com crowdfunding depois de muitos meses em que alguns quadrinhos foram postados no Facebook. Alguns quadrinhos ainda estão lá, neste link, mas o fim da saga dos pássaros na Catch.co, só no livro mesmo.

Feudalismo tecnológico

O capitalismo acabou. Estamos vivendo em um novo sistema econômico chamado tecnofeudalismo. Nesse sistema, o que se destaca é a renda que é preciso entregar aos donos da nuvem (Uber, Amazon, YouTube e afins) para anunciar ou fazer comércio em suas plataformas digitais. Essa é a tese do economista grego Yanis Varoufakis, que a descreve em detalhes em seu novo livro, Technofeudalism – What Killed Capitalism.

Quem sonhava com o fim do capitalismo geralmente esperava por alguma coisa melhor. Bom, o futuro nunca é o que a gente espera… A analogia com o feudalismo começa com o ganho de importância da renda de nuvem (cloud rent) que é similar à renda da terra que os produtores tinham que entregar aos nobres (donos de terras) no regime feudal.

No sistema econômico descrito por Varoufakis, é preciso acumular capital de nuvem (cloud capital), quer dizer, informação individualizada sobre compras, preferências e avaliações feitas por centenas de milhões de pessoas. É isso que as grandes empresas de tecnologia usam para extrair renda das outras empresas (cobrando para que elas usem seu espaço de vendas virtual super personalizado). Esse espaço virtual não é um mercado, um lugar onde compradores e vendedores se encontram. Diferente do mercado, ele é um ambiente completamente controlado, onde cada comprador vê só o que o site apresenta especificamente para ele. Em vez de mercado e lucro, o tecnofeudalismo tem ambientes controlados e renda de nuvem.

Segundo Varoufakis, já existem categorias de trabalho típicas do novo sistema. A primeira é a dos servos da nuvem (cloud serfs), “pessoas não vinculadas a qualquer empresa (…) que optam por trabalhar longa e frequentemente pesado, gratuitamente, reproduzindo o estoque de capital da nuvem, por exemplo, com posts, vídeos, fotos, comentários e cliques que tornam as plataformas digitais mais atraentes para os outros”.

Além deles há a prole da nuvem (cloud proles), pessoas que trabalham para as grandes empresas de tecnologia e são monitoradas, não mais por gerentes, mas por algoritmos e aplicativos (e, normalmente, recebem pagamentos muito baixos).

No livro, além de lamentar que o capitalismo não tenha sido sucedido pelo socialismo (e sim pelo ganho de participação da renda à moda feudal), Varoufakis analisa alguns desdobramentos dessa mudança. O lucro vai perdendo espaço para vários tipos de renda (financeira, da terra, da nuvem, de monopólios e de uso de marcas). Alguns países – atrasados na acumulação de capital de nuvem e de tecnologias ligadas a redes – vão ficando para trás. E não somos só nós, na periferia do mundo, que perdemos espaço. A Alemanha, por exemplo, não tem grandes empresas de tecnologia (como China e EUA). Hoje, até sua indústria automobilística começa a perder espaço para a de carros elétricos hiperconectados da China. A Europa, segundo Varoufakis, chegou atrasada à delimitação de espaços do regime tecnofeudal (que tem como grandes polos justamente China e EUA).  

O ganho de participação da renda (rent) em relação ao lucro tem efeitos macroeconômicos ruins pois, em vez de ser investida para aumentar a produção, essa renda é frequentemente usada para acumular ativos que já existem – como ações e imóveis – quer dizer: ela infla preços de ativos em vez de aumentar a demanda agregada. Além disso, a tendência à precarização e os baixos salários pagos pelos trabalhos de aplicativo também funcionam como freios à demanda, sinalizando recessões à frente se o sistema tecnofeudal continuar se impondo. E, futurologia à parte, talvez seja isso o que vamos ter nos próximos anos – ou décadas.  

Como a China dispensou recomendações ultra-liberais nos anos 80 e virou a maior economia do mundo

Os economistas europeus e americanos (e brasileiros!) conhecem pouco a China: sabem que ela cresce rápido, que investe e exporta muito, mas conhecem pouco as ideias dos economistas de lá e os detalhes de como o país passou da pobreza – nos anos 60 e 70 – à posição de maior economia do mundo (maior que os EUA se considerarmos as diferenças de preços, conhecidas como paridade de poder de compra). Por isso, o livro Como a China Escapou da Terapia de Choque, da economista alemã Isabella Weber, foi tão bem vindo. O livro detalha a transição do país para o “socialismo de mercado” atual – e diz como a China conseguiu fazer escolhas tão diferentes das feitas pela Rússia e pelos países do Leste europeu nos anos 80 e 90.

A China tem um longo histórico de filosofia e teoria econômica (que conhecemos pouco no ocidente, onde lemos principalmente economistas ingleses e americanos). Esse histórico de teoria econômica e de aplicação prática dessa teoria foi importante para o país conseguir evitar a adoção de políticas muito “livre comércio é sempre bom!” nos anos 80. Graças a isso, o país conseguiu se transformar na China de hoje (enquanto Rússia e Leste europeu liberaram os mercados às pressas nos anos 80 e início de 90 e mergulharam em uma crise econômica sem fim).

Na China, o governo participava do mercado, comprava e vendia produtos para estabilizar preços e criar estoques reguladores. Nos produtos essenciais e insumos básicos da indústria, a China tinha cotas que tinham que ser vendidas pelos produtores ao governo a um preço de tabela (e só o que passasse da cota ia para o mercado, um mercado onde o governo também comprava e vendia para estabilizar os preços). O resultado de não adotar preços de mercado em ritmo de “terapia de choque” – como fez o Leste Europeu – foi uma transição segura para a economia com “crescimento chinês” das décadas seguintes, além de evitar crises de abastecimento (o que era um dos objetivos básicos da política econômica de lá).

A estrutura produtiva do país não teria como aumentar a oferta de bens e serviços às pressas se os preços subissem depois de ser liberados. O efeito da liberação seria só aumentar preços e espremer os consumidores (alguns já com uma renda bastante baixa). Mesmo assim, a “terapia de choque” – com ajuste simultâneo de todos os preços, austeridade fiscal e afins – tinha defensores influentes na China e fora dela (fazendo recomendações).

Entre os defensores de que a inflação seria um mal menor, inevitável em mudanças grandes na economia, estava o então ministro da fazenda brasileiro Delfim Netto. Uma delegação de economistas do governo chinês visitou Delfim, no início dos anos 80, quando a China estudava as políticas de incentivo ao crescimento econômico de outros países.

Não deve ter sido por causa disso, mas o período pós-conversa com Delfim foi um dos que teve mais predominância do grupo pró-terapia de choque na China. O resultado da liberação de preços mais rápida nessa época foi ter vários meses de inflação alta – até que a politica de liberação fosse interrompida. Em seu livro, Isabella Weber cita a perda de poder aquisitivo da população nesse período como uma das principais causas da insatisfação que levou aos protestos da Praça da Paz Celestial em 1986 (seguidos pelo massacre dos manifestantes, ordenado por Deng Xiaoping).

Há muito mais na teoria econômica chinesa do que gatos coloridos que se diferenciam por caçar melhor os ratos. As políticas de “ir conhecendo o caminho aos poucos”, de avaliar empiricamente os resultados de pequenos ajustes antes de definir os próximos passos, são uma parte importante dessa tradição. Mais do que modelos teóricos gerais – tão usados pelos economistas do ocidente – os autores das políticas chinesas tinham uma abordagem empírica (e muito menos arrogante que a de seus colegas anglófonos, poloneses, russos e, sim, brasileiros também).

Bibliotecas surreais para todos os gostos

Há livros que são feitos especialmente para quem gosta (muito) de livros. As bibliotecas fantásticaslançamento mais recente de José Roberto Torero, é para quem gosta tanto deles que prefere de imaginá-los juntos, nos mais diferentes tipos de biblioteca. O livro tem 99 contos curtos, com descrições das bibliotecas mais diferentes. A de Veneza, por exemplo, está na ilustração a baixo e, sim, tem peixes.

Uma de minhas favoritas é a de Tiblacobei, onde os livros foram embaralhados. “Num livro, Gregor Samsa, transformado em barata, é comido por G.H. Num outro, Hamlet vê um espectro, mas não é seu pai e sim Pluft, o fantasminha”. Lá, há também edições de Orgulho e castigo, do muito distópico A revolução dos bichos em 1984 e de Madame Quixote – em que Emma Bovary abandona seu marido para ficar com o cavaleiro quixotesco (e eles vivem felizes para sempre).  

As bibliotecas fantásticas é, fisicamente, uma criatura para bibliófilos. O formato pocket, com capa dura e papel pólen, é resultado das escolhas de um escritor que edita os próprios livros (o que é uma espécie de sinal dos tempos sobre como andam as grandes editoras aqui da Terra dos Papagaios).

Para os donos de algumas dessas editoras, eu recomendaria a biblioteca da cidade de Richmond, cujas paredes são cobertas por um papel de parede que imita estantes cheias: “(…) a maioria de seus livros são blocos de madeira e os únicos de papel são, na verdade, revistas sobre a alta sociedade, encadernadas com capas de livros famosos (há um, ironicamente, com o título de ‘Os Miseráveis’).” Ela é a biblioteca número 75 no livro de Torero.

Entre as mais divertidas do livro estão também a Biblioteca dos Loucos (a número 29, que é também um hospício) e a dos Livros Leves (43, especializada em obras suaves). E, sim, eu sou um dos bibliófilos para quem livros sobre bibliotecas são uma espécie de visão do paraíso (mesmo que seja um paraíso cheio de loucos ou leve demais, às vezes).

Viagens à Lua, desigualdade extrema e vida vegetativa: o mundo assustador de UBIK

Há tempos os autores se divertem contando histórias do ponto de vista do vilão. A prática é bem mais antiga que O poderoso chefão, que é dos anos 70.

Terminei há pouco de ler o estranhíssimo UBIK, de Philip K. Dick. UBIK (escrito nos anos 60) faz parte dessa tradição narrativa. Mas, como em outras histórias, é preciso estar atento para perceber que Glen Runciter (um empresário idoso mas sempre muito agitado) é um dos vilões da trama. Parte dos funcionários de sua empresa desaparece sem deixar traço. Runciter acredita que eles fugiram do planeta. Por que simplesmente não pediram demissão? Seu principal funcionário vive na pobreza: não tem dinheiro para pagar a taxa de abertura de porta que o condapto que aluga cobra pelo “serviço de abrir a porta”. Ele quase fica preso em casa por causa disso. Seu chefe, enquanto isso, viaja em uma nave espacial própria, de luxo.

É sempre bom ver críticas ao presente serem contrabandeadas para os mundos da ficção científica. É curioso também que 1992, o ano em que a história se passa, tenha ficado tão longe do imaginado nos anos 60. O progresso tecnológico deu uma desacelerada nas últimas décadas… Carros voadores? Sem chance. Elétricos, no máximo – mas só nos países ricos.

Voltando ao livro, UBIK é sobre o mundo dentro de nossas cabeças. Uma das grandes inovações tecnológicas da história é o processo para compartilhar diretamente as percepções e acontecimentos que nossos cérebros criam.

O livro é também sobre morte, sobre compartilhar pensamentos à beira da morte, com personagens em estado vegetativo. Runciter mantém sua jovem esposa (à beira da morte) em um Moratório – um lugar para corpos congelados mantidos em “meia vida”. Ele a visita eventualmente para discutir os problemas da empresa, pois ela também é sua sócia.

Ao longo da história, outros personagens acabam ido parar no Moratório. Boa parte do livro se passa apenas na cabeça desses personagens – e nem todos percebem que foram levados para um Moratório. Não é difícil se colocar no lugar deles. Afinal, como o livro deixa claro, não há muito como ter certeza sobre quanto da nossa realidade está “lá fora” e quanto apenas dentro de nossas cabeças.

Capa psicodélica da edição mais recente de UBIK.

Todo mundo tem uma pseudociência de estimação

Não são só os mínions que acreditam em teorias sem fundamento. Por hábito, tradição ou por qualquer outro motivo, quase todo mundo tem algum tipo de credo mal fundamentado. E vale a pena ter clareza de que é um credo, não uma verdade, que não é uma coisa testada por cientistas obsessivos. A pergunta “de onde eu tiro as minhas certezas?” devia ser feita por todas as pessoas de tempos em tempos, como uma espécie de check up intelectual.

Por isso, Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério, de Natalia Pasternak e Carlos Orsi é um livro oportuno. Depois de denunciar vendedores de cloroquina e outros falsos profetas, Pasternak percebeu como era importante lembrar que muito do que adotamos como terapia no Brasil de hoje não pode ser chamado de Ciência, não foi desenvolvido e testado com métodos científicos. Em muitos casos, a “terapia” é só um conjunto de histórias – com algumas histórias falsas, fraudes conhecidas e delírios completos no meio.

Há “terapias” claramente tóxicas, como a Constelação familiar, criada por um ex-padre alemão ultra-conservador para “pôr as pessoas no seu lugar” e métodos inócuos, como a Homeopatia, que não fazem mal diretamente, mas podem manter o paciente longe de um tratamento mais efetivo.

Tomei remédios homeopáticos por toda a infância – e não me arrependo. Mas também não tomo mais. Eles me mantiveram longe de remédios com efeitos colaterais mais fortes enquanto meu corpo se curava sozinho… e isso me ajuda a ser menos hipocondríaco hoje. Sim, eu tive sorte por não ter nenhuma doença grave naquela época.

O livro de Pasternak e Orsi fala de muitas técnicas, terapias e afins que usam jargões de Ciência, usam métodos matemáticos mas não passam em testes como os que se faz hoje para verificar a efetividade de medicamentos. A Homeopatia, por diluir demais os princípios ativos, acaba tendo mais efeito placebo que efeito mesmo. E, para me convencer disso, os autores do livro contam sua história desde a criação, no século XVIII (também na Alemanha), falam sobre como seus princípios ativos foram escolhidos e como – extremamente diluídos – não passam nos testes clínicos (testes com grupos de controle tomando placebo e outros protocolos).

A terapia mais tradicionalmente aceita que o livro desmascara é a Psicanálise, criada há mais de 100 anos pelo austríaco Sigmund Freud. Freud não fez muitos testes para verificar suas hipóteses sobre como nosso subconsciente, inconsciente e afins funcionam (não fez nenhum se considerarmos os padrões de hoje para testes clínicos). Sua teoria é baseada em uma (pequena) amostra de descrições de casos. E mesmo esses casos parecem não ter se desenrolado exatamente como Freud descreveu em seus livros. A correspondência do “pai da psicanálise”, revelada no fim do século passado, desmente várias das “curas” que, nos livros, ele diz ter conseguido.

O fato é que não há nada que prove que são memórias reprimidas – memórias empurradas para o porão obscuro do inconsciente – as responsáveis por nossos problemas psicológicos. Não há nada que prove que há um inconsciente que acumula memórias reprimidas, como o descrito por Freud.

E fazer uma terapia que toma esse inconsciente e mais um monte de mitos (Édipo e afins) como estrutura para nossa forma de funcionar psicologicamente pode não resolver nossos problemas, pode até piorá-los. Acreditando na teoria de Freud e sem ter como testá-la, psicanalistas podem acabar fazendo mais mal do que bem a seus clientes. Ouvir pacientemente um cliente e tentar orientá-lo para lidar com suas angústias é geralmente uma boa ideia. Mas a forma de orientar, a partir de teorias nunca provadas, pode, em muitos casos, ser ruim.

O que fazer então? Não sei. Mas procurar um curandeiro não vai eliminar o câncer (ou a psicose) e ter alguma ideia do que não fazer já é um bom começo.

De novo: temos que pensar em de onde tiramos nossas certezas para escolher terapias (e para tomar decisões de forma geral). Quando o livro de Pasternak e Orsi foi lançado, vi uma entrevista de Orsi no UOL. A entrevistadora passa a maior parte da entrevista defendendo a Psicanálise. Ela não disse, mas só faltou dizer: “Eu faço análise desde os cinco anos. Meus pais são psicanalistas. Tem que ser uma boa terapia.”

Às vezes é difícil se desapegar e abandonar velhos suportes (em alguns casos, velhos compromissos profissionais e velhos argumentos que – fazer o quê? – ficaram velhos). Mas dá para ler novos autores e pesquisar outros ramos da Psicologia. A Psicologia não é só Psicanálise, não é só Freud, Lacan e oráculos similares. Tem pesquisa com Método científico lá também.

De um jeito ou de outro, a entrevista no UOL foi (involuntariamente) engraçada.

Não posso deixar de dizer que a crítica de Pasternak e Orsi não é nova. Eles destacam casos novos, como a Constelação familiar, que têm que ser apontados antes que façam mal a mais pessoas, mas a crítica à Psicanálise, em especial, vem desde a época em que ela foi criada.

Nos anos 60, o filósofo Karl Popper usou a Psicanálise como exemplo de o que não é o Método científico. Segundo a definição de Popper, para uma hipótese estar no campo da Ciência tem que existir alguma forma de testá-la, de compará-la com o mundo real para, dependendo do resultado do teste, refutá-la. Uma hipótese, para ser Ciência, tem que ser potencialmente refutável. Mas as explicações da Psicanálise não são refutáveis. Quando alguma coisa não sai como esperado, o psicanalista pode sempre criar uma nova explicação para o caso (que o adéqua novamente à teoria psicanalítica). Nada que observe nos pacientes fará o analista refutar a teoria que está aplicando. A teoria permite explicar cada caso de muitas maneiras: é flexível, adaptável e, desse jeito, nunca é posta à prova. A posteriori, ela sempre explica tudo.    

Popper lembra que a Teoria da relatividade precisou que um comitê científico fosse ao Ceará fotografar uma estrela perto do Sol durante um eclipse para ver se ela estaria onde a teoria de Einstein previa ou se ficaria no lugar previsto pela Física clássica, de Newton. Se o resultado do teste fosse negativo, jogaríamos fora a Teoria da relatividade porque ela seria pior que a teoria de Newton para descrever o Universo.

Outros campos (eu sempre volto à Economia) adotam hipóteses não testáveis (como a das Expectativas racionais) e até hipóteses já testadas e refutadas (como a Hipótese dos mercados eficientes, que é refutada toda vez que uma bolha especulativa estoura). E, mesmo assim, não faltam repórteres e colunistas de jornal para reproduzir o que dizem os economistas neoclássicos que propagam essa pseudociência. É um perigo! Adotar terapias não comprovadas (mesmo terapias econômicas para a administração pública) pode ser muito destrutivo.

Da próxima vez que você ouvir um economista reclamando dos gastos públicos ou defendendo juros estratosféricos, pergunte a ele de que estudos científicos ele tira suas certezas simplórias. E se ele mostrar um artigo acadêmico sem texto, só com equações, pode chamar de charlatanismo: a matemática com agregados, usada por esses economistas, não é muito melhor que a usada por astrólogos em seus mapas celestes. O jargão esotérico e a matemática mal usada fazem parte do kit pseudocientífico.

A incrível capacidade dos economistas neo-clássicos para errar previsões já os aproxima dos astrólogos, descritos no livro de Pasternak e Orsi. Minha única crítica ao livro, então, é ter esquecido os economistas “ortodoxos”, os neoclássicos (ou neoliberais, ou plutocratas mesmo). Eles também mereciam um lugar na lista das pseudociências, ao lado da Antroposofia, dos discos voadores e do pensamento positivo.  

Freud na minha estante: entre a Literatura e a Bruxaria.

PS. Assisti há pouco ao episódio do GregNews que ataca o livro. Não existe propaganda ruim: eles estão divulgando o livro para um público que anda não o conhecia. Mas a crítica raivosa – com acusações até de conflito de interesses – não teve graça: mostra só que os editores do programa fazem Psicanálise há muito tempo e que, previsivelmente, isso não está os ajudando.  

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A estranha relação entre Ciência e poder político

Ciência e poder político andam juntos há muito tempo. Na França pré-revolucionária, era difícil estudar (quanto mais fazer pesquisa) sem ser nobre ou ter um financiador nobre. A França era a grande potência econômica da época e os rumos da Matemática e da Física pós-Newton, foram traçados lá.

Esse é o começo de O dia em que voltamos de Marte, livro de Tatiana Roque sobre História da Ciência. A história segue com a Revolução Industrial e com a Inglaterra usando o progresso técnico para “demonstrar” sua superioridade em uma feira internacional de tecnologia. A ciência era usada para justificar a violência colonialista: ingleses, avançados tecnologicamente, teriam o direito de se impor aos “povos menos civilizados”.

A maior virtude do livro é o ponto de vista periférico: é uma cientista brasileira escrevendo – e ela não disfarça as crueldades colonialistas e discursos preconceituosos de cientistas que viraram referência por suas pesquisas. Nem Darwin escapa. Em um livro de 1871, The descent of man, Darwin fala em povos “primitivos”, perdendo a batalha da seleção natural para “raças mais evoluídas”. Da correspondência de Darwin, Tatiana Roque retira esse trecho: “Em 500 anos, a raça anglo-saxã terá se disseminado e exterminado nações inteiras; e, em consequência, a raça humana vista como uma unidade, terá subido de nível”.  Pior que Darwin, era seu primo Francis Galton – estudado até hoje pelos economistas por ter definido o conceito de regressão à média. Ele era abertamente racista e criou a palavra eugenia – que seria repetida com entusiasmo pelos nazistas décadas mais tarde.

Depois da temporada em que os ingleses predominaram, o financiamento mais significativo para a pesquisa passou a estar nos Estados Unidos (fortemente vinculado à pesquisa nuclear). Quando os soviéticos lançaram o satélite Sputnik 1, a Guerra Fria fez os EUA gastarem bilhões em pesquisa para ir à Lua.

Roque responde à pergunta clássica: “Por que não fizeram mais viagens à Lua depois de 1972?”. Não faltava dinheiro nem tecnologia, mas a pressão da Guerra Fria diminuiu, então passou a fazer ainda menos sentido gastar tantos bilhões em passeios lunares enquanto pessoas passavam fome na esquina.

Depois das viagens à Lua, a parafernalha da NASA passou a ser usada para monitorar a Terra – mais do que para olhar para o espaço. Nesse período surgiram muitos estudos sobre clima que ajudaram a entender o processo de aquecimento global que estamos atravessando – e que é tema das duas últimas partes do livro. A tecnologia da Guerra Fria acabou servindo também para coisas úteis…

Para o leitor local, é curioso ler que, nos anos 50, o general Dutra apoiava a criação do CNPQ (pensando principalmente em pesquisa nuclear) e que a Capes é da mesma época, criada também nos anos 50 do século passado.

No Brasil, sem o Estado apoiando a pesquisa científica, ainda estaríamos em uma grande fazenda de café ou minerando pedras para exportação (em alguma medida, ainda estamos). Os rumos da pesquisa científica têm a ver com para onde queremos ir. A ciência não é neutra e pode ser usada para aumentar o bem estar da população em vez de para produzir bombas ou disputar corridas para a Lua, pode ser direcionada para isso. Não precisamos ficar só com subprodutos de pesquisas militares sobre monitoramento e controle – como a internet ou o GPS – criados como parte da Guerra Fria. Podemos pesquisar vacinas, medicamentos e tecnologias ligadas à alimentação e à energia limpa.

Depois da temporada negacionista do último governo, temos que voltar a pensar em Ciência e voltar a usar a Ciência, agora especialmente para orientar a política (e não só para fazer o que alguns grupos com poder econômico querem). Em tempos de aquecimento global, o efeito de não fazer isso será desagradável, para dizer o mínimo.

Marte, com sua atmosfera de 96% de gás carbônico, 1.9% argônio e 1.9% nitrogênio. Um lugar ruim para morar, mesmo sendo bilionário.

To be or not to be sedated

Há coisas que é melhor não entender. Porque, para entender situações muito surreais, é preciso passar por elas. Podem até te contar, te explicar, você pode ler nos livros de História – mas sempre vai ficar aquela sensação de dúvida, um “como isso foi possível?”, “como deixaram isso acontecer?”.

O exemplo óbvio é a ascensão do fascismo no século passado. Era muito difícil, talvez impossível, entender aquilo até ver a ascensão do fascismo no Brasil nos últimos anos. Dado o custo (em perda de vidas, principalmente), eu preferia ter continuado sem entender, preferia que não tivesse acontecido de novo (de um jeito que nos permitiu conhecer o processo por dentro).

Mas esse não é o único exemplo de conhecimento que vem com um custo muito alto. E, agora, os resquícios de liberal dentro da minha cabeça gritam: “Se o custo é alto, não faz!”. E aí está toda a estultice do liberalismo. Nem tudo é escolha. No mundo real, pouca coisa é. O custo de uma doença grave, por exemplo, pode ser proibitivo, mas as pessoas ficam doentes assim mesmo. Não é uma escolha.

O contraponto mais educado aos liberais era a lembrança de que sempre há incerteza sobre o futuro – e que muito do que a gente faz tem a ver com essa incerteza. A política criada a partir dessa consciência da incerteza acabou conhecida como Keynesianismo (em homenagem ao seu principal autor, John Maynard Keynes).

Karl Popper, outro filósofo que sofreu com a ascensão do fascismo, ficou conhecido como um anti-totalítário (ele e George Orwell, na mesma época). Popper recomendava que as mudanças fossem feitas aos poucos (piecemeal, era a expressão em inglês) para que pudéssemos avaliar os efeitos do que fazíamos (sempre difíceis de prever). Nada de revolução sangrenta ou perseguição à oposição.

Mas escrevi tudo isso porque lembrei de um dos primeiros capítulos de Mestre e Margarida, provavelmente o livro mais anti-stalinista que já foi escrito. O capítulo começa com o personagem (o Mestre do título) internado em um hospital psiquiátrico. Estamos em Moscou, nos anos 20 do século passado, e o personagem-título do livro é um oposicionista vivendo em um regime super centralizado, um regime em que todos querem agradar o líder, quer dizer, quase todos (a grande maioria, pelo menos). E quem insiste em escrever falando mal do governo pode ter dificuldade para publicar seus textos, ou para encenar suas peças, ou até para alugar um apartamento.

A pobreza e o desespero acabam deixando o personagem com os nervos em frangalhos e o levando para o hospital/casa de repouso onde ele começa o capítulo.

Os últimos quatro anos de discursos de ódio, cortes de verbas e destruição institucional tiveram efeitos desse tipo sobre muita gente.  Além de reconstruir o Estado, temos – vários de nós – que reconstruir nossa sanidade.

Então, de novo, tinha lido o livro mas não tinha entendido plenamente o que acontecia com seu personagem. Acho que agora entendo. Mas é uma compreensão com custo alto. Se pudesse escolher, nesse caso pelo menos, teria preferido continuar sem entender.

PS. É assustador que o “movimento intelectual” mais influente dos anos 80 e 90 tenha sido o anti-keynesianismo (também conhecido como neo-classissimo, neo-liberalismo, ortodoxia econômica e discurso plutocrata). No lugar da incerteza keynesiana, os anti-keynesianos puseram a Hipótese das expectativas racionais. No lugar das nossas angústias, mercados supostamente eficientes. Claro que deu errado. E estamos conhecendo o erro por dentro, de um jeito que não precisava acontecer.

PS2. O “não precisava acontecer” acima é para implicar coma velha esquerda mecanicista, a do determinismo histórico. É que algumas coisas, sim, são escolhas: dependem do que nos organizamos para fazer. Para o bem ou para o mal, o futuro é incerto, não está dado.

PS3. Deu errado. Os plutocratas vão dizer que está tudo bem, que este é o melhor dos mundos possíveis, mas as pessoas nas ruas (pedindo comida em cada esquina) discordam dessa avaliação.

Ramones: Tudo que você quiser ou não quiser (como sedativos, ou crescer ou ir para um Cemitério maldito).

Tempo desconjuntado, Severance e economistas perdidos

Mesmo em seus livros menos conhecidos, Philip K. Dick sempre produz alguma provocação assustadora. Em O tempo desconjuntado (Time out of joint), o personagem principal acha que é uma determinada pessoa, acha que tem um trabalho mas, na prática, não sabe quem é nem o que faz. Seu trabalho é estender uma guerra já longa e destrutiva – mas ele nem sabe que há uma guerra acontecendo, nem sabe em que década vive (acha que está nos anos 50).

A versão mais high tech desse problema aparece em Severance, série da Apple TV dirigida por Ben Stiller. Nela, funcionários de uma empresa têm sua memória dividida em duas e, quando estão no trabalho, não lembram de nada sobre suas vidas privadas. Depois, quando saem, mudam de volta para a memória privada e passam a não lembrar do que acontece no trabalho. Mesmo quando estão trabalhando, eles não têm muita certeza do que fazem: sabem que têm que arrastar números verdes em uma tela com fundo preto mas nenhum deles tem ideia de o que os número representam.

Trabalhos muito “engrenagem” (muito subdivididos, em que cada pessoa faz uma parte muito pequena) são assim há tempos – e eles emburrecem. Não foi Marx quem disse, foi Adam Smith, o mesmo sujeito que disse que a divisão do trabalho leva à riqueza das nações.

Lendo O tempo desconjuntado e lembrando Smith & Cia, só consigo pensar nas muitas pessoas que passam o dia arrastando números em uma tela, números que – muitas vezes – elas não sabem bem o que significam. Uma grande parte do trabalho dos economistas é assim.

Ontem recebi uma propaganda da FGV com seu indicador de produtividade da economia brasileira. Mas, lendo as notas de rodapé da publicação, dá para ver que eles estimam a produtividade com dados agregados – o que é completamente inconsistente. Sendo muito claro: números calculados desse jeito têm grandes chances de estar errados. Quando Robert Solow inventou o modelo que a FGV usa (nos anos 50), seus colegas de Cambridge (a Cambridge inglesa, não a de Massachusetts onde Solow trabalhou), avisaram que a conta era inconsistente, que não dava para somar apartamentos com taxis, gado reprodutor e fábricas para chamar tudo de Capital em uma equação agregada. Mas Solow não deu bola e seu modelo acabou sendo empurrado até para para os livros didáticos sobre desenvolvimento econômico.   

Resumindo: o pessoal que estima a produtividade também não sabe exatamente o que está fazendo. Não que eles sejam muito diferentes da maior parte dos economistas…

Conto: quando os robôs souberem tudo sobre você

O que vai acontecer quando a inteligência artificial ficar esperta mesmo, quando for treinada com nossos dados pessoais?

O conto neste link é uma mini-distopia: se passa em um futuro muito próximo (ano que vem?) e tenta dar uma ideia do que seria um mundo em que os dados de nossos e-mails e do georreferenciamento de nossos celulares fossem interpretados e usados por empresas de tecnologia de uma forma mais individualizada.

Banksy e Gêmeos, CCBB, Rio de

Aristocracia, literatura e a Light

Os vampiros são a prova viva (?) de que a Revolução Francesa não fez seu trabalho direito. Nobres, ricos, com desprezo pelo bem estar alheio, sim: os vampiros são os aristocratas que a revolução não conseguiu decapitar, os que se recusaram a morrer.

Eles já viviam do nosso sangue antes, só passaram a fazer isso de um jeito mais explícito nos livros de ficção. A tese não é minha. Topei com ela em um livro do antropólogo David Graeber, num trecho em que ele os usa para ilustrar o tipo de analise que antropólogos mais antigos (da safra de Claude Lévi-Strauss) faziam.

Lembrei deles agora depois de conversar com duas pessoas que viram suas contas de luz subirem porque a Light decidiu que sim, que o relógio, por algum razão, passou a registrar um consumo muito maior agora do que nos meses anteriores. Elas reclamaram com a própria Light, que disse que inspecionou seus relógios e julgou que o lado certo da disputa era o dela mesma, Light.

Não há como não se sentir meio drenado, tendo pelo menos seu dinheiro sugado por uma empresa monopolista privatizada da qual parece não haver como se defender. Nem van Helsing nem Buffy a caça vampiros virão para nos salvar. As concessionárias de serviços públicos são consideradas pelos gestores de fundos de investimento como o ativo seguro: elas garantem um fluxo constante e estável de lucro sob os dentes dos cotistas do fundo…

Sou um gradualista, um defensor das mudanças lentas, bem estudadas e bem embasadas. Mas vendo as contas infladas impostas por empresas que eram públicas até outro dia (com a conta de água foi igual…) entendo porque os velhos marxistas tinham tanta vontade de imitar os revolucionários da França de 1789 (para ver se conseguiam um resultado melhor).

O que vai sobrar (Foto: quadro da exposição Gêmeos, dos Gêmeos, no CCBB).

PS.: A Light, em especial, está longe de ser um modelo de boa administração. Talvez por isso tenha corrido tanto para esfolar os usuários de eletricidade do Rio de Janeiro nos últimos meses. Mas o princípio das “carteiras defensivas” dos fundos de investimento ainda vale no agregado: em geral, esfolar usuários de serviços públicos através de concessionárias que são claramente monopólios privados é uma receita segura para ganhar muito dinheiro.

Androides e ovelhas conscientes (as ovelhas)

O noticiário sobre chatbots e inteligência artificial me lembrou de Andróides sonham com ovelhas elétricas? – o livro de Philip K. Dick que inspirou Blade Runnero filme. No livro, o teste para identificar androides não era um teste de consciência, era um teste de empatia. Os androides já tinham (ou aparentavam ter) consciência. Eles sabiam quem eram, tinham desejos e medos e se defendiam de qualquer perigo. Eles faziam planos e tinham sonhos (com ovelhas elétricas ou não).

Mas a falta de empatia tinha efeitos estranhos. Os androides tinham uma espécie fria de desapego a qualquer forma de vida – que parecia cruel, que era cruel. Há uma cena no livro em que eles não reparam que estão chocando um humano – que os recebeu em casa – ao arrancar patas de uma aranha (para ver se ela conseguia andar com quatro patas). Isso, resumindo muito, era a falta de empatia dos androides.

Na versão para o cinema, o caçador de androides acaba seduzido por uma androide. Ela também é sedutora no livro, mas não vai terminar a história com alguém que caça androides para viver. Isso seria repulsivo, mesmo para um androide. O que nos leva ao início da história: a androide tem (ou parece ter) consciência: medo e desejo – e planos para o futuro.

A semelhança com os humanos é tanta que um personagem secundário do livro – também caçador de androides – pede ao personagem principal que lhe aplique o teste de empatia pois não tem mais certeza se é humano ou se é um androide com memórias artificiais.

Sim, ainda estamos longe disso – embora o ChatGPT já tenha tentado seduzir um repórter. Os robôs de hoje são, na maior parte dos casos, digitais, sem corpo de andróide. Mas isso não os impede de serem leitores insistentes (aumentando as visualizações de sites e de posts do twitter) e de serem escritores mais ou menos medíocres (o que já é muita coisa). Eles não matam pessoas, como no livro, mas podem gerar fake news e espalhá-la de um jeito muito eficiente. Seu produto parece com o feito por humanos e pode ser difícil criar um teste de empatia para eles (no livro, o teste dos androides envolvia sensores de reação, para ver se só fingiam empatia ou se dilatavam as pupilas com a velocidade certa…).

Na distopia mais próxima que consigo imaginar, já não sabemos que autores (e que leitores) são de verdade. Alguns bots clicam nos sites (puxando as estatísticas para cima) e outros escrevem os sites. Isso não é completamente novo. Há mais de 20 anos, quando trabalhei em uma agência de notícias, li textos da Bloomberg que já eram preenchidos por computador. Eram textos curtos, notas sobre o mercado de ações, por exemplo, que tinham uma fôrma padrão, tipo: “A bolsa de NY abriu em alta de X, puxada pelas empresas Y e Z, depois de fechar ontem com queda de W”. Não sei se alguém lia essas notas com alguma atenção. Passei os olhos por várias, mas eram sempre meio sem gosto. Eu as via porque já estavam na tela.

Na distopia que imagino, teríamos muitos textos sem sal desse tipo pulando em nossos tablets e computadores. E teríamos muitos bots lendo esses textos e os usando como base para produzir outros textos – que seriam lidos por mais bots em um mundo estranho de redatores e leitores mecânicos (alguns já quase conscientes do que estavam fazendo).

No Ovelhas elétricas, a fronteira entre consciência e simulação de consciência era o que mantinha o personagem principal trabalhando. Ele só conseguia matar androides porque tinha certeza de que sua consciência era só aparente, não era de verdade. Ainda vai ser assim por muito tempo. Os neurologistas não entendem como a nossa consciência surge ou como ela funciona. Sem ter clareza sobre o que ela é, vai ser difícil copiá-la.

Para muita gente, talvez não faça diferença: uma simulação bem feita pode bastar. Para escrever um texto ou para se deixar seduzir (como no livro), a simulação pode parecer boa o suficiente. Mas há alguns riscos. No livro, a androide não tem nenhuma empatia pelo caçador de androides que seduz – e isso faz muita diferença, para os dois.

A única certeza nisso tudo é que estamos indo para um mundo ainda mais estranho que o atual, um mundo onde não vamos ter certeza se nossos interlocutores são pessoas ou se têm algum traço de humanidade.

Ovelha orgânica preocupada.

Sinopse: Chatbots sonham com ovelhas digitais?

Em um futuro distópico, no distante ano de 2024, os chatbots já quase não se distinguem dos humanos na internet. Um analista de sistemas é contratado para identificar chatbots aplicando questionários de avaliação de existência de consciência aos usuários da rede. Ele descobre que – depois de conversar muito com chatbots – a maior parte das pessoas reais passou a falar como eles (sem  ironias, por exemplo) para ser entendido mais facilmente pelos bots.

Em pouco tempo, o analista começa a desconfiar que seus empregadores não querem identificar os bots para bani-los da rede, mas para excluir os não-bots.

Em uma cena dramática, ele vai a uma conferência virtual sobre “O que é a consciência” e “Como nos distinguimos dos chatbots” e percebe que a maior parte dos conferencistas é chatbot. As palestras de chatbots vão ocupando mais espaço e deixam para a parte secundária da conferência os humanos – que já cobram menos que os bots para fazer suas apresentações.

– Eles não têm consciência! São só estruturadores de informação! – digita ele, em uma troca de mensagens tensa com seus chefes.

– E vc acha q é o q?!? – responde um deles.  

Por que os novos “empreendedores” são só trabalhadores precarizados

Joan Robinson é quem estava certa: é a concentração de mercado, mais que o capital. Os dois costumavam andar juntos mas agora, com Uber, iFood e afins, a separação ficou mais clara.

Os motoristas de Uber trabalham como próprio carro, o próprio capital. Mas quem ganha dinheiro não são eles, é o concentrador de mercado, o intermediário quase-monopolista, o aplicativo ao qual eles estão vinculados.

A mesma coisa vale para os antigos funcionários de escritório que agora estão fora do escritório (em home office). Eles usam o próprio computador, a própria energia e a própria conexão de internet. O dono da empresa não precisa nem comprar ou alugar uma sala. Ainda assim, ele tem poder de mercado e define a sua fatia e a do empregado na divisão da renda gerada com a produção.

Já era assim antes. Uber, Amazon e fins só deixaram tudo mais explícito. Nem vou falar dos donos de motos que viraram entregadores de aplicativos como o iFood. Pouca gente é mais explorada. A questão não é ser dono da moto, é trabalhar para uma mega empresa que faz a intermediação com os clientes e para quem cada entregador é só mais um no meio de dezenas de milhares: o entregador tem zero poder de barganha na hora de definir o pagamento por entrega.

A solução mais tradicional seria a relação entre “colaboradores” e empresas de aplicativo ser (bem) regulada pelo governo (como deve ser em qualquer mercado em que um lado tem muito mais poder que o outro, em qualquer mercado com oligopólio). Mas, enquanto o lobby das empresas imobiliza os governos, a solução mais viável pode ser os novos “empreendedores” (como alguns se consideram) se organizarem em um sindicato para ter algum poder na hora de negociar aumentos.

A ideologia de mercado – o discurso “seja um empreendedor!” – atrapalha esse processo. Os funcionários não assumidos de um iFood, Uber ou youtube têm que entender que não são microempresários, são empregados sem direitos trabalhistas, funcionários informais, trabalhadores precarizados.

Se se organizassem direito, poderiam até fazer uma greve. Dá para imaginar o youtube sem vídeos novos por uns dias? A mega plataforma de vídeos perdendo audiência e reduzindo a receita anúncios da Alphabet? Difícil. Só acredito vendo.

De metrô (ou a pé) e sem youtube.